OS ESTADOS DA MATÉRIA AMOROSA OU UM LIVRO DO CARALHO

Yurgel Caldas [1]

 

Para saber com quantos paus se faz uma canoa vagando livre pelos rios de lodo-engodo aos inocentes e moralistas, jesuítas e carmelitas, leia-se isto: “Morderei as tuas nádegas!”. Para apontar quem ri por último daqueles que não fazem a mínima graça pelas tribunas de Senados pelo mundo afora, Brasil adentro, entenda-se isto: “Pastarás com teu falo esta noite”. Para descobrir quem é passado na casca do alho a favor dos favores da carne, na carne, pele fina, cumpra-se isto: “Sobre esta mesa desta taberna imunda te possuí”. É assim que Joãozinho Gomes passeia a sua língua (e quem dera fosse a nossa) pelo corpo da escrita e se faz um gentleman sacana pela escrita em que passeia e domina como poucos nessas nossas bandas. É dessa forma que A Libido de Érato se ergue: ainda com a leitura-líquida dos versos, uma prosa só de dedos feita para tocar em muitos corpos, mas só daqueles que são curvos e turvos com os olhos de ler.

Na esteira essencial de Safo, Juvenal e Marcial, este livro de poemas eróticos poderia ser uma cartilha do pensar, querer e ter, onde os sujeitos (máquinas desejantes) aplacariam dores e desamores, que desembocaria no “amor total” de certos trovadores provençais e monges goliardos. Assim, a ascensão espiritual (“anjo indo ao céu; aos gritos...”) só pode ser alcançada, ao contrário do Cristianismo mais ortodoxo, por meio da matéria, no caso o corpo do(a) outro(a), como em “de vera oramos se ouvimos sinos,/ e sinuosos à solar espanto nos insinuamos”. Do antro mais fétido de uma taberna medieval ao cume do monte mais sagrado, o corpo da escrita (ela, fêmea indômita) é passeada, usada e abusada para o bem dos desejos humanos, que também é equino: “Eis aqui o cavalo!”, elemento quase onipresente nos quadros do poeta, que já é anunciado na Apresentação do livro: “[...] aos relinchos uníssonos dos nossos cavalos. Cá me valho disto para dizer-vos [...]”.

Herdeiro de todas as farras e excessos, o poeta escolhe o mundo dionisíaco e seu catecismo ultra hedonista, contrário à razão apolínea, e pinta com água-forte cenas menos sutis e mais picantes, com pitadas à mão-cheia de todas as pimentas da Ásia. É desse jeito que “Lídia” – a musa árcade dos prazeres contidos apenas na ideia de beleza sugerida pelos versos à vida natural de bosques e rios de um Tomaz Antônio Gonzaga, ou mesmo de um Bocage neoclássico – é subvertida em uma rameira insaciável, que se desfaz de suas purezas e encara a vida crua e... nua; uma vida fácil, mas difícil de ser alcançada (e esse é um ensinamento do Catecismo em que se torna A Libido de Érato), de quem tem o que deseja: “comemoravas a gozos com teu/ centésimo marido”. É assim também que a Deusa do Amor é cortejada: “Bebe vinho, Afrodite! A flor de ti? Acredite;/ perfuma o mar”. A crença na embriaguez é tamanha que, em outro poema, vê-se o avanço para o laço a seguir: “É divino o odor de vinho/ em teu hálito de Vênus, eu o respiro”. Assim, Joãozinho Gomes consegue ensinar aos incautos a felicidade básica, que depende do entendimento físico e anímico dos desejos: bebida e comida à vontade, o que não quer dizer propriamente um desperdício, mas simplesmente a valorização estética da língua poética, pelo corpo da linguagem, que não seria outra coisa senão se fazer verbo.

E na sua República feita somente de pele, onde pastam todo tipo de gado, desde vacas, novilhas e touros, até cavalos, cabras e bois; na sua Utopia bordada olimpicamente, onde habitam deuses e seres mitológicos, como Quíron, Dioniso (Baco), Circe e Vênus (Afrodite); na sua Atlântida líquida e orgástica, onde as musas descem de seu pedestal à vida bestial, como fazem Lídia, Ifigênia e Gioconda; na sua jaula viscosa, onde rastejam lesmas, mambas, jias e lagartixas – o poeta, ao escrever A Libido de Érato, descreve a si mesmo e a nós, Shakespeares, Monets e Lears, Bachs, Artauds e Athos, como ele e todos nós, prestes a sacar das penas e dos soldos para inscrever com estilo uma estocada que marque a foda, amor que pica, que bate e que fica.


[1] Prof. Dr. de Literatura Portuguesa no Curso de Letras da Universidade Federal do Amapá, e no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Desenvolvimento Regional, na mesma Universidade.